terça-feira, 12 de setembro de 2017

Lovecraft sobre Poe


All that we see or seem. Is but a dream within a dream.

     Até onde vai o limite entre arte e entretenimento? Pensemos...

   "Antes de Poe a maioria dos autores de terror trabalhou quase sempre no escuro, sem a compreensão da base psicológica da sedução do horror, e tolhidos em maior ou menor grau pela conformidade a certas convenções literárias fúteis como o final feliz, a virtude premiada e em geral um didatismo moral oco, aceitação de padrões e valores populares, e empenho do autor em inserir suas próprias emoções na história e em tomar partido em favor dos defensores das idéias artificiais da maioria. Poe, ao contrário, percebeu a impessoalidade essencial do verdadeiro artista; e sabia que o papel da ficção criativa é simplesmente expressar e interpretar eventos e emoções como realmente são, não importa a que sirvam ou o que provem — bons ou maus, agradáveis ou repugnantes, alegres ou deprimentes, com o autor desempenhando tão-somente a função de cronista vivaz e imparcial e não a de professor, simpatizante ou apologista. Ele viu claramente que todas as faces da vida e do pensamento são igualmente apropriadas como tema para o artista e, inclinado que era por temperamento ao extravagante e ao tenebroso, decidiu ser o intérprete desses sentimentos poderosos e desses não raros acontecimentos ligados não ao prazer mas à dor, não ao crescimento mas à decadência, não à tranquilidade mas ao medo, e que fundamentalmente ou são contrários ou indiferentes, aos gostos e julgamentos expressos tradicionais da humanidade, e à saúde, sanidade e bem-estar geral normal da espécie.
    Os espectros de Poe adquirem assim uma malignidade convincente que não se encontra em nenhum dos seus predecessores, e estabelecem um novo padrão de realismo nos anais da literatura de horror. Além disso, o intento artístico e impessoal foi ajudado por uma atitude científica não muitas vezes vista antes dele; dessa forma Poe estudou mais a mente humana que os usos da ficção gótica, e obrou com um conhecimento analítico das verdadeiras fontes do terror que redobrou a força das suas narrativas e o emancipou dos absurdos inerentes à mera confecção convencional de calafrios."
(LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural na Literatura, p.48, 1973)


Obrigado, Giuliano Hartmann. 
In memorian
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sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O Servo

     Acordo assustado, relâmpagos iluminam o quarto todo enquanto a chuva dança ao som dos trovões, alguma coisa me perturba mas não sei ao certo o que, parece que estou molhado mas sem suor. Um clarão me deixa saber que a porta está aberta e agora sei o que me aflige, uma sombra se aproxima e quanto mais perto está mais imóvel eu fico, aterrorizado, petrificado, sem saudações adiantou-se:
     - Serei seu eterno servo se disser que sim, tudo o que deseja conseguirá por mim. Só há um preço a pagar, no fim.
     Perguntei qual era o preço, perguntei o que ele queria, mas não consegui nenhuma resposta a não ser a repetição do que me foi dito. De forma assombrosa eu sabia que era verdade que eu poderia ter tudo por ele, mas não conseguia entender como, estava apavorado e confuso, apenas pedi que fosse embora, e ele repetiu:
   - Se disser que sim...
     E eu disse... Sim! Sim! Sim! Suma da minha frente, desapareça! E consegui dormir, depois que meu corpo exausto de tanto tremer permitiu. Eu teria pensado que era um pesadelo não fosse o susto de acordar na manhã seguinte e ver aquela sombra em minha frente, senti um peso enorme, era como se eu estivesse preso, aquela figura impactava meu quarto.
     Fiz várias perguntas mas não consegui nenhuma resposta, refleti por alguns instantes e concluí que eu havia caído na armadilha do meu próprio medo, era dia, mas parecia noite, fiz um teste "Quero um café da manhã com tudo que eu gosto", e lá estava, inexplicavelmente surgiram doces e salgados, talheres e o café mais delicioso que eu já bebi. A brincadeira começou a tomar proporções cada vez mais exageradas a medida que eu percebia todas as possibilidades na minha frente, naquele espectro, n'Ele. Eu havia conseguido um servo eterno.
     Na escola, dentro da sala de aula, no recreio, no laboratório, na biblioteca e na saída, no almoço, nas tarefas e nos passeios, eu pedia a Ele as respostas do menino mais inteligente da turma, pedia a Ele que as meninas sonhassem comigo, pedia a Ele que meus projetos de ciência fossem os melhores. Sempre estava ao meu lado, era como se minha sombra tivesse outra perspectiva, nem incomodava pois nada falava, o tempo me fez acostumar. Vivi longe de tudo, da família e de todos, teve que ser assim pois as perguntas sobre a origem de tudo que eu tinha me irritavam, eles não entenderiam.
     Mudei para a cidade vizinha, e por lá vivi muitos anos, sem dificuldades, comprava de tudo, pois eu tinha Ele, não precisava de emprego, eu tinha Ele, todos os prazeres eu tinha, por Ele. Certa noite uma tempestade rugiu sobre os céus, estendi meu braço e disse:
     - Quero uma xícara de café...
     E lá estava, vivi inescrupulosamente minha vida até aquele momento, recebi uma ligação, minha mãe, que desconforto... Meu pai havia morrido, mas logo pensei... o servo!
     - Desejo que meu pai retorne, deixe a morte e junte-se a vida novamente.
     E Ele ficou lá, imóvel, intocável. Me irritei e pensei outra vez:
     - Sugiro uma troca, vá, descanse em paz, mostre o caminho de volta para meu pai, vá...
     ...
     Eu queria apenas que esse maldito espectro pudesse responder alguma coisa, ou ao menos explicasse porque alguns dos meus desejos ele não consegue realizar, ou não quer. Só existe uma coisa que pode aliviar minha dor agora, preciso voltar pra casa. Meia hora na estrada, naquela chuva violenta e por fim chego ao doce lar, vejo minha mãe e lágrimas falam por nós dois, vou até o quarto do pai e fico parado lá, a mãe lamentou algo mas eu não estava prestando atenção, passo pela casa toda, mãos trêmulas, camisa molhada e o rosto abatido, nostálgico, distante, pensando sobre eu mesmo, que homem patético, frustrado e irreparável me tornei o último quarto, não menos importante era o meu, abro a porta e um frio toma conta do meu corpo, vi um menino deitado em minha cama, apavorado, foi estranho ver um estranho me estranhando, quanto mais me aproximava mais terror parecia causar nele, cheguei mais perto e disse:
     - Eu não conheço você, mas deve ser da vizinhança, a chuva está muito forte lá fora, você conhece minha família?
     Ele disse que sim.
     Assombrosamente lembro de ter tentado dizer isso mas as únicas palavras que realmente saíram da minha boca foram estas:
     "Serei seu eterno servo se disser que sim, tudo o que deseja conseguirá por mim. Só há um preço a pagar, no fim das contas."
     Ele disse que sim.

                                                                                                                                                - Patrick K.